
A Flôr, a Côr, a Forma, o Cheiro.
A Cantada
A cantada
Em seu livro “Na Sala com Danuza”, ele conta qual foi a melhor cantada que recebeu em sua vida. Voltando para casa com um possível namorado, ele lhe perguntou se queria ira à praia no dia seguinte, no que ela confirmou. Ele então disse: -”te telefono ou te cutuco?” – eu achei ótima. Então pensei que nunca tinha tido uma cantada tão encantadora, mas então me lembrei de uma.
Eu trabalhava no interior e já tinha meu primeiro filho. Havia um senhor, um pouco mais velho do que eu, casado e com oito filhos. Sabíamos que a sua esposa cuidava de uma loja que tinham e ele cuidava da fazenda. Bebia muito. Eu e meu companheiro o encontrávamos às vezes num restaurante ou bar com seus amigos. Era simpático e bonachão como só os alcoolizados podem ser. Parecia que levava a vida com leveza, que os filhos eram responsabilidade da esposa. A ele cabia a parte mais leve do casamento. Era muito respeitado. Era cordial, era rico.
Certo dia ele me abordou no trabalho e disse que queria me contar uma coisa. Ele não sabia por que, mas toda vez que me via ele ficava com as pernas bambas. E foi só isso. Eu contei a um colega que me disse que era uma cantada. Na hora eu não entendi e fique entre perplexa e intrigada.
Hoje ele me emociona com a lembrança. Eu devia ser muito especial para que ele ficasse com as pernas trêmulas e me sinto tocada ao lembrá-lo. Sempre me chamava por senhora e sempre achava um assunto para falar comigo. Não era um cliente correntista, mas tinha um valor substancial aplicado na poupança. Embora a conta com a esposa fosse conjunta, ele não a usava. Cabia a ela, a mulher, todo o ônus de gerenciamento.
Acredito que havia um acordo mudo entre os dois. Ele ficava livre para farrear com os amigos, beber, e ela cuidava dos negócios e dos filhos. Havia paz no casamento pelo que sabíamos. No interior a menor desavença cai na boca do povo. Às vezes eu ficava irritada por alguns do trabalho por saberem onde eu estivera e com quem estivera. Era como se houvesse uma rede de informação subterrânea e da qual nada escapava.
Certa vez uma amiga me chamou de hipócrita quando eu disse que não gostava de fofocas. Ela disse que “todo mundo adora fofocar”. Acho que ela estava certa. No interior, naquela época, não havia muito que fazer. Salvo uma festa ou beber uma cerveja no bar com amigos, jogando “palitinho”. Quando fui mandada para trabalhar lá, e precisava do emprego, não podia recusar, chorei muito. Não havia, então, nenhuma facilidade a que eu estava acostumada. Quando acabava o pão na única padaria, não havia outra fornada. O leite vinha na carrocinha em galões e não em saquinhos ou caixas. Chegar à cidade à noite, no domingo, era temeroso: não se achava nada para comer. Se em casa não houvesse comida era uma noite com fome. Demorei-me a acostumar. Da capital, onde tudo era fácil de adquirir, para uma cidade que era quase o fim do mundo, foi uma mudança de vida radical. Descobri, então, que sou adaptável. se de início chorei, logo estava entrosada.
Hoje a cidade cresceu, tem agroindústrias e quase não reconheço as ruas quando por lá eu ando. Novos bairros. Permanece o centro onde eu circulava e isso é confortável. Puxo pela memória para me lembrar dos nomes das pessoas que eu convivi, mas com raras exceções, eu me esqueci. Mas houve um tempo em que eu conhecia e era conhecida. Nessas cidades você mora dez anos e continua forasteira. Quando cheguei eu tinha tipo uma carta de apresentação: o pai de uma colega de faculdade da minha irmã. Ele me acolheu e fez muita diferença para que eu logo fosse aceita na localidade. A cidade gostava de mim e eu aprendi a gostar dela. Mas, quando retornei para a capital não senti saudades. Deixei amigos que foram se afastando com o tempo e eu fui me adaptando com as distancias e com as perdas.
Daise, 23/07/2024
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